terça-feira, 16 de janeiro de 2007

giulio cesare




Hoje, no Estadão, comentário de Lauro Machado Coelho sobre DVD com a produção de "Giulio Cesare", de Haendel, assinada por David McVicar e William Christie.


Tem-se discutido muito a tendência recente dos encenadores de ópera a retirar a ação de seu contexto original, debatendo o que pode e o que não deve ser modificado (um Pagliacci transposto para o Rio de Janeiro no ano passado ainda preserva o essencial de sua mensagem, enquanto o Don Carlo, fora de sua moldura histórica, fica sem pé nem cabeça). Munição nova para esse debate é trazida pelo "Giulio Cesare", de Haendel, montado por David McVicar no Festival de Glyndebourne, em junho de 2005 (Opus Arte). A ação passa-se no Egito, mas na fase final da Era Victoriana, de apogeu do império colonial britânico. Júlio César vê-se convertido num militar inglês que intervém no reino do Egito, certamente para preservar a dominação de seu país sobre aquela região estrategicamente fundamental. Pode, à primeira vista, parecer despropositado, mas a fluência da direção e a alta qualidade do elenco e da direção orquestral de William Christie fazem desse "Giulio Cesare in Egitto" um espetáculo muito estimulante.




Não se pode dizer que a proposta de McVicar seja original: ela retoma a idéia básica de uma encenação de Peter Sellars, em Dresden, em 1990. Nela, Júlio César era o presidente dos EUA, que vai ao Egito durante uma das freqüentes crises no Oriente Médio. As ousadias daquele espetáculo – o conflito árabe israelense como pano de fundo, as alusões explícitas ao terrorismo, aos petrodólares, ao tráfico de drogas, e à intromissão da CIA em assuntos internos de um país soberano – dão um caráter de antecipação a uma montagem muito anterior à primeira guerra EUA-Iraque.O espetáculo de McVicar não é politicamente tão provocativo quanto o de Sellars, embora não deixe de ter alusões claras à dominação do mais forte. Mas tem, em comum com a montagem de Dresden, o tratamento bem-humorado dado à figura de Cleópatra (lá, Susan Larson; aqui Danielle de Niese, jovem, bonita, sensual). Ambas estão a léguas da Cleópatra séria e bem comportada representada por Valerie Masterson no "Julius Caesar" da ENO (em que o papel-título é feito por Janet Baker).




Tem muito bom rendimento a nítida empostação de musical americano dada a uma ária como “Da tempeste il legno infranto”, que De Niese canta-dança secundada por suas damas de companhia. Esse é um recurso que McVicar estende a outras personagens também: é assim que encena “Chi perde un momento”, a ária do eunuco Nireno (o contra-tenor Rachid bem Abdeslam). Embora essa alternância de sério e cômico não pertença à fórmula da opera seria metastasiana, aqui ela funciona muito bem.O elenco é de primeira. A mezzo Sarah Connoly, caracterizada de uma maneira que a faz ficar masculinizada, perfeita num papel que originalmente foi escrito para o castrato Senesino, domina muito bem as exigências de um papel diabolicamente difícil, em especial na ária “Qual torrente che cade del monte”. Com ela também McVicar faz brincadeiras de bom rendimento. A aflição de Cleópatra e de Cúrio em ver César fugir do palácio, pois sua vida corre perigo, enquanto ele insiste em acabar de cantar a longa ária da capo “Al lampo dell’armi!”, toca num dos pontos nevrálgicos da opera seria: as interrupções para expressar os affeti em árias intermináveis, que eram bastões entravando as rodas da ação. Na vertente séria da ópera, é notável o trabalho de Angelika Kirchschlager como Sesto; e de Patrícia Bardon como Cornelia, sua mãe e viúva de Pompeu, atraiçoado por Ptolomeu, que o manda matar e oferece a César a sua cabeça. O faraó, irmão de Cleópatra e seu rival pelo poder, é feito com muita precisão pelo contra-tenor Christophe Dumaux. A cena de sua morte, trucidado por Sesto e Cornelia e, depois, retirado de cena, pelos faxineiros que fazem a limpeza do palácio, e o levam embora como um saco de lixo, é de uma violência e ironia explícitas muito forte.




A esse bom elenco, junte-se o trabalho de William Christie à frente da Orchestra of the Age of Enlightement. Em suas mãos, o papel da orquestra não é a de mera acompanhadora. Christie consegue fazer dela uma protagonista, ao ressaltar, com cuidados de ourivesaria, as diversas filigranas da escrita haendeliana. Dentro de uma disco-videografia que conta com interpretações notáveis como a de sir Charles Mackerras ou a de René Jacobs, confesso nunca ter ouvido a partitura tocada de forma a adquirir tal relevo.

Um comentário:

Ricardo Pinto disse...

Em sua opinião o Giulio Cesare de McViccar é superior ao de Sellars? Gostaria de saber pois pretendo adquirir um ou outro em DVD (o do Sellars tenho em VHS). Se puder me responda para o e-mail ricardopinto@ricardopinto.org
Forte abraço.
Ricardo Pinto