domingo, 3 de dezembro de 2006

villa, bartok e almeida prado


O crítico João Marcos Coelho faz no Estadão de hoje interessante análise do piano no século 20 a partir de gravações do "Guia Prático", de Villa-Lobos, do "Mikrokosmos", de Bartok, e da "Cartilha Rítmica" de Almeida Prado.


O que têm comum a "Cartilha Rítmica para Piano" de Almeida Prado, o "Guia Prático" de Villa-Lobos e o "Mikrokosmos" de Bela Bartok? Os três constituem maravilhosas introduções às linguagens pianísticas do século 20, ferramentas indispensáveis para todo pianista que deseja abandonar a formação naftalina do passado e ingressar na complexidade da música do presente. A "Cartilha", lançada no Brasil há seis meses, já teve sua primeira edição esgotada e deve funcionar daqui para a frente como companheira de estrada de todo estudante de piano (o livro de partituras organizado por Sara Gandelman é acompanhado de um CD onde a pianista Sarah Cohen interpreta a "Cartilha". O segundo e o terceiro estão sendo simultaneamente lançados em gravações do selo Naxos: nove dos onze cadernos do "Guia Prático" aparecem em sua forma original pela primeira vez sob os dedos competentes de Sonia Rubinsky, no quinto volume de sua integral; e o pianista húngaro Jeno Jandó faz uma leitura estimulante dos seis volumes do "Mikrokosmos" de Bela Bartok em álbum duplo também da Naxos

Pela ordem, o "Mikrokosmos" constitui a melhor cartilha para dedos e ouvidos se habituarem às sonoridades da música da primeira metade do século 20. Suas 153 peças foram escritas por Bartok entre 1926 e o final de sua vida. Lá está o resultado de um trabalho sistemático na coleta do multifacetado folclore da Europa central e do leste e sua transformação em arquétipos de modelos composicionais. A gravação de Jando é excelente e recomendável. Já a "Cartilha Rítmica" de Almeida Prado, como ele mesmo diz, é uma seqüência do "Mikrokosmos". Também organizada por dificuldade técnica, aplica-se a facilitar a compreensão das músicas da segunda metade do século 20. “Ela surgiu comigo na sala de aula.Deve ser utilizada no dia-a-dia do professor com o aluno, como se faz com o Czerny, mas eu já coloco dissonâncias, para o estudante habituar-se com a textura contemporânea. Bartok não chegou a Messiaen, Stockhausen ou Boulez, e é isso que faço nesta "Cartilha" ", diz o compositor. Ele enfatiza a predominância do ritmo: “Acho que é o que mais faz falta na formação do pianista hoje. Faço contraponto de tempos, as chamadas quiálteras, muito presentes em Villa e Charles Ives. Mas também superponho tempos e mostro as métricas grega, hindu e africana, que aprendi com Messiaen.” Aliás, Almeida Prado queixa-se muito de que se estuda basicamente para tocar a música do passado. “Em 1971, Nadia Boulanger já dizia que não conseguíamos deixar de nos impressionar com a "Sagração da Primavera" de Stravinsky, porque ainda sequer havíamos chegado, em termos de linguagem e ouvido, a 1913, data da estréia da obra

Por seu próprio isolamento, pianistas sofrem mais da síndrome do passado. Quase sempre são formados para interpretar a música do passado, pois é ela que constitui repertório dos concursos de piano e também da vida musical no planeta. Funciona como um dominó: como é formado e tem ouvidos só para o passado, ele fará do ontem seu prato de resistência – e por tabela reforça no público a sensação de que a música é coisa de museu, do passado. E não viva, pulsanteSonia Rubinsky, que há anos toca uma excelente integral da obra para piano de Villa-Lobos para o selo Naxos, está lançando o volume 5 com nove dos onze livros do "Guia Prático" de Villa-Lobos. “Pela primeira vez, o "Guia" é gravado na ordem original concebida pelo Villa para o editor Max Eschig, de Paris”, diz a pianista. Na verdade, o "Guia Prático", como lembra Almeida Prado, originou-se de volumes de canções folclóricas brasileiras harmonizadas para coral a quatro vozes e utilizadas na disciplina canto orfeônico nas escolas. A matéria-prima: 137 cantigas de roda do imaginário brasileiro. Nos cinco volumes havia de tudo: piano solo, harmonizações a duas vozes, coral a quatro vozes e voz/piano. Em 1932, Villa montou grupos de cinco ou seis cantigas, escreveu-as para piano e separou-as em dez álbuns, publicados pela Max Eschig; o 11º foi publicado em 1949, formando o conjunto das 60 peças da versão pianística.

Em geral, os pianistas têm feito seletas dessas peças, em geral curtíssimas. Miniaturas adoráveis, exigem muito do intérprete, pois concentram em algumas dezenas de compassos todo um mundo, como gosta de dizer Sonia Rubinsky. Pela primeira vez o "Guia" surge em sua inteireza. E é evidente que, ouvindo-se o conjunto, modifica-se a maneira pela qual devemos considerá-lo. Vasco Mariz escreve que Villa não teve “pretensões de criar peças de concerto”. Pode não ter tido a intenção, mas produziu vinhetas com consistência muito maior. Mais do que pecinhas de circunstância, muitas têm status semelhante, por exemplo, às ‘pecinhas’ das "Cenas Infantis" de Schumann. E este, sem dúvida, é o maior mérito desta gravação. Ao restituí-las na ordem original, Sonia as faz crescer muito. Até porque estes anos todos de convivência com a obra do Villa a transformaram numa pianista muito especial neste repertório – como prova o Prêmio Carlos Gomes, que ela acaba de receber, ou a distinção da revista inglesa "Gramophone", que escolheu este CD como um dos dez melhores lançamentos internacionais do mês de setembro .Quando fala do "Guia", Almeida Prado não economiza: “Villa fez uma verdadeira enciclopédia da música brasileira.” E Sonia confessa que no início considerou que o "Guia" tinha muito a ver com o "Mikrokosmos". “Mas depois desfiz esta impressão: quando ouvimos todo o "Guia", temos uma impressão muito maior. Villa transpõe o ambiente cultural brasileira para a música. A genialidade dele está na ambientação das peças. Schubert faz isso com o lied: ele pega a letra e a ambienta musicalmente. É como uma litografia de Picasso, daquelas da série do Don Quixote, onde com apenas uma linha contínua o pintor constrói todo o desenho com o mínimo de elementos." Agora, é esperar dos candidatos a pianistas que mergulhem no universo das linguagens da música do século 20; e, do público, que ouça com ouvidos despreconceituosos tanto o "Guia Prático" quanto o "Mikrokosmos". E aguardar o sétimo volume da integral de Villa-Lobos de Sonia Rubinsky, que ela vai gravar em 2007 e onde registrará os livros 10 e 11 do "Guia Prático", além de outras vinte peças originalmente descartadas pelo Villa na edição francesa. Enquanto isso, o sexto volume, já gravado, e que inclui a obra-prima pianística do Villa, o "Rudepoema", será lançado no primeiro semestre do ano que vem.

Um comentário:

Anônimo disse...

eu li essa matéria no jornal e gostei bastante. beijos, pedrita