Nas últimas semanas, o escritor Luis Fernando Verissimo, tem proposto em suas colunas dominicais no Estadão encontros improváveis. O quarto deles, publicado no domingo passado, diz respeito a Alma Mahler e o pintor Oscar Kokoschka.
Encontros e desencontros (4)
Ach, Viena. Começo do século. O pintor Gustav Klimt amava Alma, que casou com outro Gustav, o compositor Mahler, depois enviuvou e teve um caso com o pintor Oscar Kokoschka, mas casou com o arquiteto Walter Gropius, deixando Kokoschka doido. Kokoschka mandou fazer uma boneca da Alma Mahler em tamanho natural, já que não poderia mais tê-la em carne e osso. Existe uma correspondência de Kokoschka para o fabricante da boneca com instruções detalhadas sobre a reprodução de cada centímetro da mulher perdida que devem ser as mais pungentes cartas de amor e descorno jamais escritas.Até aí aconteceu mesmo. Agora imagine o seguinte.Um dia, perto dos seus 80 anos, Kokoschka recebe um telefonema de Alma Mahler no seu chalé austríaco. Nunca mais se viram ou se falaram, depois da separação. Alma divorciou-se de Gropius, casou-se com o escritor Franz Werfel, fugiu dos nazistas com ele para Hollywood, enviuvou outra vez, agora vive em Nova York, onde, dizem, toma uma garrafa de Benedictine por dia. Kokoschka lutou na Primeira Guerra Mundial na cavalaria austríaca, andou por Praga, exilou-se em Londres durante a Segunda Guerra, agora é um dos pintores mais famosos da Europa. E pela primeira vez em mais de 40 anos, ouve a voz de Alma Mahler.
– Koko! Liebeshen!
– Alma, é você?
– O que restou de mim. Há quanto tempo não nos vemos, Koko!
– Há exatamente duas guerras mundiais.
– Ah, Koko, Koko. O que foi que nos aconteceu?
– Foi o século 20, Alma. Aconteceu com todo o mundo.
– Lembra na nossa Viena, Koko?
– Ach, Viena...
– Os cafés, as festas, o cheiro dos vinhedos no ar. E os violinos, Koko!
– Violinos demais, Alma. Não nos deixaram ouvir os tambores.A vida era uma valsa e nós dançávamos pelas calçadas o dia inteiro. Eu com você, Klimt com Emilie, Schönberg com Schiele, Kraus com Musil, Wittgenstein com Freud, Lou Salome com todos...
– Disso eu não me lembro.
– Como nós éramos loucos.
– E jovens, Alma.
– Não me fale, Koko. Não se faz a uma senhora da minha idade o que o tempo fez comigo. Você devia me ver. Lembra daquele queixinho que você gostava tanto? Hoje são muitos. E as rugas! Você devia me ver, Koko.
– Mas eu estou vendo você, Alma. Você está aqui na minha frente. E você tem 25 anos.– Ah, sua famosa boneca. Me contaram a respeito. Ela ainda existe?
– Existe. Eu a trato muito bem. Como teria tratado você, se você não tivesse preferido o Gropius, aquele imbecil.
– Não fale assim do homem que criou o Bauhaus.
– “Bauhaus” sempre me pareceu um bom nome para casa de cachorro.
– A boneca, Koko. É bonita?
– Linda. Um pouco quieta, mas este é um dos seus encantos. Ela só vai onde eu a levo. Não reclama, não foge com outro... E não tem uma ruga.
– Koko... Quanto você quer por essa boneca? Não é justo que só você me tenha com 25 anos. Mande a boneca por avião.Ela só iria adquirir maus hábitos na sua companhia, Alma.
– Como você está amargo, Liebeshen. Se eu soubesse que você iria ficar assim, não teria partido seu coração.
– Você está bêbada, Alma?
– É apenas Benedictine. Um licor feito por padres. A maior contribuição da Igreja Católica ao mundo, fora algumas coisas de Michelangelo. Um antídoto para o século 20. Faço qualquer coisa para ter essa boneca, Koko! Para botar na frente dos meus espelhos, que há anos se riem de mim.
– Não.
– Eu volto para você, Koko! Você pode ter a Alma Mahler de verdade. Uma Alma mais experiente, curtida pelo tempo, muito mais interessante. Finalmente juntos, Koko.
– Adeus, Alma.
– Onde você vai?
– Não sei que horas são em Nova York, mas aqui são 5 da tarde. E todos os dias, às cinco da tarde, eu danço uma valsa com a boneca.
– Koko!
segunda-feira, 12 de março de 2007
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Um comentário:
O texto do Veríssimo, como sempre, é muito engraçado. Mas a realidade, às vezes, supera a ficção. Alma -- que ficou conhecida como "la veuve des quat'z arts" -- praticava o esporte de endoidar a galera. Ela enlouqueceu seu professor, Alexander Zemlinsky, que tinha talento saindo pelo ladrão, mas era feio que nem bater na mãe. Desprezado por ela, Zemlinsky compôs uma das óperas mais angustiadas desse período, "O Anão", a história de um bufão todo deformado que se apaixona pela Infanta da Espanha, e se suicida quando ela manda trazer um espelho e lhe pergunta se ele acha que uma mulher bela como ela é pode se interessar por um aborto como ele. Oskar Kokoschka não só mandou fazer uma boneca com as formas de Alma, como a representou e a si mesmo no quadro intitulado "Os Amantes", em que o casal aparece deitado numa nuvem tempestuosa, como se estivesse sendo arrastado para um dos círculos do Inferno. O quadro é deslumbrante, mas é pura vingança de negligenciado. E não foi só isso: Kokoschka escreveu, em 1915, uma peça desesperada, chamada "Orpheus und Eurydike", na qual Orfeu descobre que Eurídice, depois de morta, o corneou com Hades, o deus do Inferno. Ele atravessa o Estige, salva-a, traz a mulher para a superfície, e mata-a de novo! É condenado à forca por isso. No momento da execução, o espectro de Eurídice aparece e diz que pode salvá-lo, desde que ele a perdoe. Orfeu diz que prefere ser enforcado, e morre amaldiçoando a traidora. Ó corno interminável! Essa peça, de um expressionismo descabelado, foi transformada em ópera em 1925. É aqui que a coisa fica realmente interessante. O autor da música, Ernst Krenek, escolheu esse texto porque, exatamente naquele ano, estava curtindo uma dor de corno sem tamanho, por ter-se separado da mulher, que o traíra. E essa mulher... era Anna Mahler, a filha mais nova de Gustav e Alma. Ô mundo pequeno, sô!
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