O crítico João Marcos Coelho comenta no "Cultura" do "Estadão" de hoje novas biografias de Mozart e Beethoven lançadas no Brasil. O texto segue abaixo.
Mozart e Beethoven, além das obviedadesJá se disse várias vezes que cada época reconstrói a imagem dos grandes artistas de acordo com suas visões de mundo. A nossa, neste início de século 21, é a vi
são multicultural, a de tentar compreender a importância e a especificidade de cada criador. Mas isso tem pouco ou nada a ver com as biografias mais leves, destinadas ao grande público, sobre os grandes artistas. Quando os biografados são compositores a coisa complica mais ainda. Pululam expressões vazias como “há momentos em que ele é único”, ou “ninguém se igualou a ele”, ou “ninguém suplanta sua universalidade”. Dois livros que obedecem a este figurino, mas conseguem ultrapassar as obviedades são lançados no Brasil. São as biografias: "Beethoven", de Edmund Morris (Objetiva, 288 págs., R$ 39,90) e "Mozart por trás da Máscara", de Lincoln Maiztegui Casas (Planeta, 368 págs, R$ 49,90). Os dois são jornalistas. Morris nasceu em Nairóbi, no Quênia, tem 67 anos, mas desde os 28 trabalhou em Londres e vive em Washington. Colabora com a "New Yorker" e especializou-se em biografias de presidentes norte-americanos. Maiztegui Casas é uruguaio de Montevidéu, viveu 18 anos na Europa, sobretudo na Espanha, fugindo da ditadura em seu país. Colaborou para jornais como "El País" e esta é sua primeira biografia. A surpresa fica por conta do fato de que o uruguaio construiu um livro bem mais interessante e equilibrado do que o celebrado autor de biografias colaborador da "New Yorker". Embora profundo conhecedor de Beethoven, Morris prefere certo descompromisso com os fatos em troca de boas sacadas que provocam sorrisos e até meias gargalhadas no leitor. Para caracterizar a grandeza do autor da "Missa Solemnis", por exemplo, espinafra outros compositores: Mahler é “masturbatório” e “Haydn é mais admirado pelos musicólogos do que pelo grande público”. Morris deixa claro que está escrevendo “a história de uma vida e não uma pesquisa sobre a obra de Beethoven”. Então deveria aprender com o excepcional livro de Lewis Lockwood (editado no Brasil há dois anos), que alterna capítulos para especialistas com análise das obras com comentários precisos e também interessantes sobre a vida de Beethoven. Não é necessário, como faz Morris na abertura de seu livro, recontar a velha máxima para atrair o leitor. Aquela pergunta feita a uma feminista nos seguintes termos: você aconselharia uma mulher de 23 anos, que perdeu quatro filhos, a abortar a quinta gravidez de um marido alcoólatra e violento? Sim? Então você teria abortado Beethoven. Dizer que “desde o início um radical, Beethoven tornou-se ainda mais radical com a idade” não é verdadeiro. Até a terceira sinfonia, sua música nada tinha de radical; devia muito a Haydn e Mozart. Há outros exemplos de generalizações inadequadas.Mas, não se pode crucificá-lo. Ele conhece muito de Beethoven e escreve de modo atraente. Chama a atenção para a décima das onze Bagatelas opus 119: “Algumas de suas bagatelas para piano, conhecidas como ‘ninharias da oficina de um mestre’, duram pouco mais de 1 minuto. Uma (a décima, Allegramente) encerra-se em apenas 9 segundos. Elas podem ser ninharias, mas segure-as contra a luz e elas brilham como metal precioso”. Na mosca. Há muito que aprender com este livro – e rir com as tiradas, mas sempre levando em conta que, como dizia Kraus, este tipo de sacada sempre contém meia-verdade e meia mentira. A tradução é boa, mas escorrega, como quando fala de peças para violino e evoca as “cordas abertas”: a expressão correta é cordas soltas (a corda solta vibra livremente sem que o dedo do executante a pressione).Maiztegui Casas, em seu "Mozart", felizmente só padece de um excesso positivo: o amor incontido pelo biografado. “Pertenço”, diz ele, “ao PMR – Partido Mozartiano Radical”. Mas isso não o leva a distorções. Ao contrário. Consegue sintetizar, num livro acessível ao grande público, muitas das mais importantes contribuições de musicólogos e estudiosos de Mozart. E, acima de tudo, Casas não tem pretensões. “Sem pretender ter descoberto nada, queria fazer algumas reflexões sobre o homem e o artista surgidas em longos anos de leituras e audições. Isso se reflete no uso farto que faz da correspondência de Mozart. Ou no fato de dedicar mais de metade de seu livro ao menino prodígio e ao período de Salzburgo; 150 páginas esmiúçam os formidáveis dez anos finais do compositor, vividos intensamente em Viena. Um exemplo fascinante é o modo como escreve sobre a "Flauta Mágica", incluindo a recepção crítica dos contemporâneos à atualidade, de Goethe a Massimo Mila, passando por Stravinski.Mas nem só de paixão se nutre Casas. Também de ódio. Foi, aliás, uma imensa revolta contra as inexatidões históricas e a figura idiotizante de Mozart mostradas na tela em "Amadeus" que o levou a escrever este belo livro: “Não aceitei nem aceitarei jamais a teoria de que o filme narra uma história imaginária (...) Para a imensa maioria dos milhões de espectadores que viram o filme em todo o mundo, Mozart será sempre o bobo da risada oligofrênica, o palhaço flatulento e ridículo que o filme mostra. Nesse sentido, "Amadeus" faz mais mal à imagem de Mozart que toda a historiografia e a literatura que o mostraram como um crianção ao longo de dois séculos (...) Grande parte do impulso que gerou este livro tem como fundamento a ira e a repulsa que esse filme, feito em má hora, provocou em mim.” Se todo mundo canalizasse sua raiva de modo tão positivo como Lincoln Maiztegui Casas, certamente viveríamos num mundo melhor.
5 comentários:
Então, quem vai escrever um desagravo ao autor da Nona, depois de ter visto o "Segredo de Beethoven"? Que o uruguaio me desculpe, mas levar a ferro e fogo um filme como "Amadeus" -- por sinal, muito bom cinema -- é bobagem. Não se esqueçam de que o pontapé inicial nessa visão deliberadamente distorcida -- por razões estéticas -- da relação Salieri/Mozart foi dado por Aleksandr Púshkin (que o Casas consideraria mais insuspeito e respeitável do que Miloš Forman). E, depois, dizer que o Mozart do filme condiciona a imagem que se tem de Wolfgang Amadeus, dá licença!... Por acaso alguém molda a sua visão de Chopin na imagem açucarada que Cornell Wilde criou em "À Noite Sonhamos"?
De fato, lamentável que o autor uruguaio tenha essa visão de "Amadeus"... Estou certo que os benefícios que esse filme trouxe para a divulgação da música do velho Wolfgang são infinitamente maiores que quaisquer eventuais "prejuízos" que possam ter havido à imagem do compositor.
sou ingênuo, mas sei escolher o melhor: Mozart só o do H. C. Robbins Landon...
e Beethoven, Mainard Solomon ....
Robbins Landon e Solomon, eu assino embaixo. Mas não nos esqueçamos de um clássico, ao qual devemos muito: o "Mozart" do casal Massin, com seu impiedoso detalhismo. E o "Beethoven" do Lockwood, sabe, não é nada mau.
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